28/03/2013

Histórias Sobre Fotografias: Casablanca

 
 
Pela enésima vez surpreendia a avó com os olhos pregados ao ecrã, completamente absorta, embrenhada nas sensações daquela trama a preto e branco. Casablanca, era o nome do filme. Um best-seller do século passado que a ela não dizia coisa nenhuma. Ternamente a avó estendeu-lhe a mão fazendo-a aconchegar-se no seu regaço. Tinha aproximadamente a sua idade quando tudo acontecera. Uma grande parte da alta sociedade espanhola rumava ao norte de Africa, fugindo aos resquícios de uma guerra civil que não se compadecia com ninguém. Nem mesmo com as famílias de quem se movia nos altos meandros da política. Ou, especialmente, com elas. E ela, recém-casada com um dos principais líderes da revolução, tornara-se um alvo fácil.

Por circunstâncias, ou por um qualquer contratempo, foi parar a Casablanca, onde já se estabelecia uma grande percentagem da elite europeia. Sentindo os indícios de uma guerra que não tardaria em começar, os senhores do poder punham os seus entes queridos a salvo. Mas eram principalmente as madames francesas que ali se encontravam, as mulheres e filhos dos magnatas espanhóis estabeleciam-se em territórios periféricos, sensivelmente mais a norte. Desde que, há algumas décadas atrás, os dois estados tinham decidido partilhar a supremacia sobre aquele reino de sultões que Casablanca era um protetorado francês.

E assim, ela se viu sozinha no meio de desconhecidos. Entre as mademoiselles francesas, que se exibiam em clubes privados ostentando luxo e riqueza, e a população local, onde se denotava uma certa pobreza, mas também, a autenticidade, o tradicionalismo, alguma ingenuidade e muito encantamento. Deambulava pelo universo das emoções e deixava que o corpo se embebesse em visões, cheiros e sabores, naquela terra onde as mulheres escondiam o corpo até ao rosto. Entre a cidade cosmopolita e os bairros tradicionais de mercados ao ar livre. Não passaram muitos dias até que se encontrasse com Mahamed, o vendedor de fruta que lhe desvendou o sentir, mesmo através do véu que passou a usar para melhor se entrosar com a população local.

No início eram apenas os olhares, num diálogo intenso que revelava mais que uma conversa de palavras, os dois, frente a frente, um de cada lado da banca de venda. Absorviam sofregamente os aromas dos frutos tropicais. Mas a inevitabilidade daquela paixão não permitiu que se mantivessem tão longe quanto a distância da largura da banca de frutas, e os prelúdios na suite de hotel, que o marido luxuosamente pagava, não se fizeram esperar. E os passeios, escondidos, pelos monumentos e zonas históricas, durante o dia, precederam noites escaldantes onde se desnudava de todos os véus. Até que um dia a guerra acabou, e o célebre senhor da política, agora instalado no poder, a resgatou para o seu papel de esposa. Acompanhante de luxo nas altas reuniões político-sociais.

Avó, a minha mãe?... A tua mãe nasceu alguns anos mais tarde. E a indústria cinematográfica fez Ingrid Bergman e Humphrey Bogart criarem estes dois monstros sagrados, que alimentam as minhas recordações.

22/03/2013

Histórias Sobre Fotografias: Rostos Que Marcam II

 
 
Com um punhado de areia ele plantou um jardim. Conduziu a assistência em viagens imaginárias por terras que nunca haviam percorrido. Pelo caminho das histórias viajaram com o povo Tuareg, nómadas berberes que vivem no deserto do sahara. Contou lendas e mitos do seu povo. Senhores, príncipes e princesas. Que da cultura tuareg não há muita escrita, são tudo contos ancestrais de tradição oral. Ele próprio dizia já ter nascido contador de histórias. Sou um filho de Ulisses, Sinbad, Sherazade, e dos cantores de blues deste planeta. Nos olhos um sorriso maroto… toda a sabedoria das suas gentes se transporta na algibeira de um contador de histórias, amarrada pelas notas de um alaúde.

De onde eu venho os trovadores nascem cedo. Sou da terra dos homens livres, nasci no meio do deserto, num oásis na terra de lugar nenhum. Um artista nasce da sorte. Além do dom é preciso ter sorte, e eu tive a sorte de nascer filho de um trovador berbere. E de uma poetisa. A minha mãe era poetisa e carregava-me numa trouxa às costas enquanto recitava os poemas da nossa gente. Assim me fiz contador de histórias. E músico. Também sou músico, sou percussionista e toco vários instrumentos. Também tive a sorte de conviver com griots, os mestres das artes e da palavra. Com eles aprendi muitos mitos e epopeias do meu povo, que cultivo até hoje. Além de dom e sorte, o contador de histórias precisa ter memória.

Era um contador de histórias marroquino, radicado no mundo, a contar histórias do seu país.


16/03/2013

Convite

 

Entre cursos de água cristalina e o casario que salpica de branco a paisagem, Alegrete caminha a passos determinados pela vida. Num tempo muito próprio. Como se as horas tivessem uma medida de tempo oculta. Clepsidra de saberes que se alongam pelo sobe e desce das ruas estreitas em conversas das gentes, dia e noite, em comunhão de sentires.

De história longa, que alcança os primórdios da humanidade, esta é uma terra que guarda tesouros nos seus horizontes por explorar. Lugares de culto e encantamento, depositários de riqueza, de esperança, de prosperidade. Um mundo à vista por onde os ventos espargem nobres aromas de força e vontade. Porque é assim o tempo, não para e as gentes têm de andar com ele, carregando o orgulho do passado e a confiança no futuro, seguindo caminho rumo a um novo amanhecer. Alegrete faz as gentes e as gentes fazem Alegrete, serenamente em harmonia com a natureza.

Altaneira. Orgulhosa. Alegrete é poesia, é história, é tradição. Alegrete é uma lição.