21/02/2013

Histórias Sobre Fotografias: Vaguear Pela Sombra

 
Vagueiam por toda a parte. Ora vagarosas, ora apressadas, umas levando a vida passo a passo, outras correndo atrás dela. São as sombras que habitam a cidade e a levam para a frente ou para traz, consoante as marés. No mar de gente que todos os dias inunda as ruas e avenidas, as praças e ruelas, ou mesmo os becos sem saída, há sombras que se movem transportando a verdadeira essência dos corpos. Essência que, quase entorpecida, só se revela na cumplicidade com o espírito, nos encontros a dois revestidos de clandestinidade. Como velhos amantes, sombra e espírito trocam confidências de alcova que só para eles fazem sentido.
A sombra enaltece aquilo que de mais genuíno o espírito tem, e ele, por sua vez, ensina-lhe os truques para se esgueirar entre a fantasia e a realidade. Fórmula humana de a alma viver em liberdade. Mesmo quando o corpo sobrevive a prazo numa existência moribunda, a sombra, sempre ela, guarda a réstia de dignidade que persiste mesmo nos corpos sem destino. Ou o lado oculto do Ser, que com ele coabita numa vivência equilibrada de querer e poder. O que se mostra nem sempre é o que se quer mas o que se pode, porque há o verso e o reverso do espelho, cada alma é assim. Ora transparente, ora opaca, balançado entre a fantasia e a realidade, entre a mentira e a verdade. Cada sombra carrega o seu corpo, criando a simbiose perfeita entre parasita e hospedeiro numa relação de sobrevivência.
E dessa forma os corpos vagueiam pelas sombras, como um só Ser, que são, na diversidade de um mundo cada vez mais igual.
 

18/02/2013

Histórias Sobre Fotografias: Corpos Que Conversam Corpos Que Se Descobrem


 
 
Eram sempre intensos, os diálogos que travava com o seu próprio corpo. Às vezes longos, durante horas, outras vezes apenas por breves instantes. Mas todos eles de um auto-conhecimento crescente e cada vez mais profundo do corpo que desabrochava em si. Como uma flor que se constituía para mais tarde gerar frutos, ia sendo cada vez menos menina e cada vez mais mulher. Tantas as transformações, tantas, naquele corpo em desarmonia com a mente. Conversavam conversas longas e aguerridas de confrontos brutais.

Todos os dias se surpreendia com uma nova descoberta, e um novo confronto, para resolver numa conversa de intensidade extrema. Profunda e esmagadora, a dilacerar a própria pele. E a deixar as marcas da batalha cravadas no rosto. Ó corpo que te apresentas com tanto mistério! São transformações e mais transformações para entender, a toda a hora. Ainda se houvesse uma lição que fosse aprendida e pronto, mas não, os mistérios pareciam não ter fim. Havia sempre um outro problema no dia seguinte. E outro no dia seguinte ao seguinte.

Só mais tarde, já mulher, percebeu que o corpo é para conhecer devagar. A conversar. Conversar até ao limite do entendimento, e do conhecimento. Que depois vem a serenidade.


15/02/2013

Histórias Sobre Fotografias : Metro do Porto [Casa da Música]

 
Observava atentamente a ladainha dos jovens que eram praticamente a totalidade dos passageiros, àquela hora do dia. E sonhava. Ele também já tinha tido aquela energia, aquela mesma disposição, aquele mesmo vigor e aquele mesmo jeito para catrapiscar as raparigas. Que agora lhe pareciam mais atrevidas, diga-se de passagem. Coisas dos tempos, os tempos mudam e mudam também os comportamentos. Mas, mal feitas as comparações, será que as coisas mudaram assim tanto? Os jovens continuam a ter sonhos, a fazer projectos para o futuro, a querer ser mais e melhor. Ele percebia-o pelas conversas de uns e de outros que ia ouvindo ao acaso. A questão é se esses sonhos se tornarão realidade, ou se esses projectos se concretizarão, ou ainda se um dia serão mais e melhores. Melhores pessoas, claro. Ele, melhor que ninguém, sabia quantos sonhos se podem perder ao longo de uma vida, e quantos projectos não passam disso mesmo. O quanto a vida pode moldar uma pessoa. Tinha-o sentido na pele.
Acabava de pagar a sua dividida para com a sociedade. Conversa esta mais hipócrita, tinha sofrido as consequências dos seus erros, isso sim. Tanto tinha ambicionado ser mais que se esquecera de ser melhor. Foi atrás do dinheiro fácil, encantou-se com as ostentações de luxo que passou a presenciar, e daí até ao mundo do crime foi apenas um passo. E por isso tinha passado os últimos vinte anos a ouvir dizer que tinha de pagar a sua dividida para com a sociedade, e que se tinha de reabilitar para essa mesma sociedade. Tretas, só tretas. A sociedade é que precisava ser reabilitada, e com urgência. Antes que fizesse com aqueles jovens o mesmo que tinha feito com ele. Agora que eles ainda traziam com eles os projectos dos bancos da faculdade e ainda se lembravam de ser antes de ter, talvez ainda fosse tempo.
E de repente, o metro parou. Embrenhado nas divagações nem tinha percebido que se aproximava da sua estação. Era ali que devia ficar, dali iria a pé até casa. O apartamento quase em ruinas no centro da sua invicta cidade do Porto, que tinha herdado dos pais. Pegou na mala onde guardava os seus poucos pertences e saiu, caminhando devagar. Estava velho, aos cinquenta e cinco anos.  


 
 
 

08/02/2013

Escolhas

 
 

Há horas em que é preciso escolher, a vida é feita de escolhas. Em cada fase, em cada momento, há sempre uma escolha a fazer e se não a fazemos o destino escolhe por nós. Seja lá o que for, isso do destino, mas a verdade é que ninguém fica parado e pronto. Há sempre um qualquer andamento, escolhido ou não. E se não tivermos feito a escolha corremos o risco de pensar que tudo poderia ser diferente.

Mas fazer escolhas é ficarmos prisioneiros das suas consequências. Há escolhas que custam lágrimas, dor, sofrimento, muitas vezes escolhas que fazemos para alimentar o nosso próprio ego, e há escolhas que fazemos precipitadamente. O momento da escolha é importante, ele próprio doloroso, às vezes, mas é sempre melhor escolher antes do que depois. A dor do depois é insuportável e irreversível. Satisfaz, apenas, a admiração exagerada pelo nosso próprio ego, no momento de a seguir.

As dores que veem no final são sempre consequência das nossas escolhas, tantas vezes feitas nos momentos mais conturbados da nossa vida…

… e há escolhas que doem tanto, tanto, tanto…