30/12/2016

Um Conto de Ano Novo



Àquela hora, já todos andavam num autêntico corrupio. Embora ainda faltassem trinta minutos, ninguém queria correr o risco de chegar ao derradeiro segundo e lhe faltar uma passa para terminar a contagem decrescente. Por isso, os ditos frutos secos que ao que parece naquela noite concediam desejos eram contados e recontados vezes sem conta. Mesmo alguém mais distraído que não ligava a essas coisas e achava que ainda tinha tempo de apanhar uma taça de espumante à última da hora acabava por entrar na azáfama, incitado pelo vocalista do conjunto contratado para animar a festa.
No fundo, todos sabiam que não passava de um ritual, mas era bom acreditar. Era bom crer que a data era um ponto de viragem, que no dia seguinte tudo estaria diferente e que tudo de mau que tinha acontecido até ali desapareceria. Pelo menos, durante os próximos trezentos e sessenta e cinco dias. Dali a um ano, na mesma data e à mesma hora, repetiriam os desejos.
Entre uma dança e outra, o rapaz do conjunto lá ia anunciando os minutos que faltavam. A movimentação tornava-se cada vez mais intensa e a música parou. Deixando cada um procurar o lugar junto de quem queria fazer aquela travessia, ou mesmo dando tempo aos mais atrasados para se munirem das devidas passas e espumante. Até que recomeçou uma melodia tranquila, contrastante com os estados de espírito.  
E o porta-voz do conjunto continuou a anunciar quanto tempo faltava. Cinco minutos, quatro, três, dois… quando faltava apenas um minuto, todos se calaram. Como se se pusessem em sentido para receber o novo tempo que estava a chegar.
Faltavam só já dez segundos e a contagem começou. A música era apenas uma batida ritmada que se ouvia de uma forma crescente, enquanto os números inversamente proporcionais eram gritados por entre os desejos implorados. Até que só já faltava um. Faltava apenas um segundo para novamente começar a contagem crescente. Mas esse último, ninguém o contou. Ouviu-se um estrondo seguido de um grito: - Parem!
Começou uma correria caótica e instintiva, sem destino. A música calou-se. Assim como se calou a multidão, depois dos gritos de desespero. O silêncio tornou-se ensurdecedor. Até que, aos poucos começaram a emergir sussurros. Cada um aventando hipóteses, tentando explicar a ocorrência. Tiro, bomba… ou seria algum outro engenho mais complicado e infinitamente mais maléfico?
Uma figura franzina apareceu de um canto. Atravessou o espaço tranquilamente, assobiando para o ar.
Era apenas um velho que não queria passar o ano.



20/12/2016

Um Conto de Natal



Na mesa havia alguns fritos de Natal. Poucos, que o dinheiro não dava para muita fartura. Ainda assim, fazia-se o que era quase impossível para manter a mesa posta naquela noite. Ninguém lhe tocava, para que não ficasse despida. Nem as crianças. Diziam-lhe que era para o menino Jesus, quando de madrugada descesse pela chaminé. Na verdade, era porque apenas havia uma filhó para cada um, feitas com a farinha que tinha sido roubada ao pão. Seriam o desjejum do dia seguinte.
Para aquela noite tinham a ceia que a mãe conseguira, desviando um pouco, muito pouco, do que o marido lhe dava todos os meses para a casa. Comprara uma posta de bacalhau e completara a panela com couves e batatas do pedaço de terra que o vizinho lhe tinha emprestado para semear.
Foi a avó quem comandou o ritual. Era sempre ela. Mesmo já nem sequer andando pelo próprio pé, devido às dores que lhe tinham deformado os ossos, era ela a autoridade máxima. Começou por agradecer a uma qualquer entidade divina a refeição que iam degustar. Os miúdos olhavam-na com uma certa desconfiança. Não entendiam porque tinham de agradecer, se tinham tão pouco. Com certeza mereciam muito mais. Deviam era protestar, isso sim. Sabiam que havia quem tivesse tanto a sobrar.
No entanto, esqueceram todos os protestos assim que começaram a comer. A mãe tinha feito um milagre. Aquela ceia tinha um sabor fabuloso. Sabia a amor, disse quando lhe perguntaram o que tinha posto na panela. Comeram até se fartarem.
E então, estava na hora de ir à missa. Era um hábito que todos gostavam, pois logo a seguir toda a gente da aldeia se juntava à volta da fogueira a cantar canções ao menino. Todos ajudaram a avó a sentar-se na cadeira onde o pai tinha improvisado umas rodas. Algo que faziam com naturalidade, pois era a lei da vida. A avó precisava que a carregassem, eles carregavam-na como ela já tinha feito com eles. E estavam prontos.
Mas antes de saírem, a avó pediu que lhe alcançassem o saco que estava guardado atrás da porta. Era um saco grande e todos ficaram parados com os olhos muito abertos a olhar para ele. Não entendiam o que é que a avó queria daquele grande saco. Muito serena, como se aquele fosse um momento sagrado, ela começou a tirar casacos lá de dentro. Um para cada um, havia para todos. Tinham sido feitos com lã de camisolas velhas que ela tinha desmanchado.
Agora entendiam as horas e horas que ela passava agarrada ao seu tricot.



15/10/2016

Coração Renovado



Um dia, doeu-me o coração. Tinha sido atingido por uma seta certeira, proveniente de um qualquer capricho da vida. A vida tem assim destes caprichos cruéis. Atira setas a alvos frágeis. Diria até que o faz por maldade, talvez. Mas possivelmente, não. Possivelmente, o propósito é mesmo outro. Eu só sei que o meu coração doía.
E eu não queria um coração dolorido. Resolvi livrar-me dele. Rasguei o meu peito e arranquei-o com todas as minhas forças. Deitei-o fora e despojei-me assim das dores. Senti-me aliviada por instantes. Pensei que podia viver sem coração. Naquele momento de alívio, achei que era melhor assim. Mas logo comecei a sentir um vazio no meu peito. Um vazio que era o buraco deixado pelo coração. E o buraco também doía. E crescia. E à medida que crescia, a dor aumentava. Percebi que não valia a pena ter arrancado o coração e perdi-me um pouco de mim.
Até que num outro dia, outro qualquer capricho da vida devolveu-me o coração. Vinha renovado, livre de dores. Trazia algumas cicatrizes, é verdade. Mas dei-me conta que essas cicatrizes o tinham fortalecido.
Não, nunca mais quero viver sem coração!